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Neurocientistas brasileiros desvendam como o cérebro processa valores como o altruísmo

Possuir valores morais é tão humano quanto se compadecer da tristeza do filho ou se alegrar com a vitória do time de futebol. Pouco a pouco, a natureza da moral tem sido revelada pelos estudos de neurocientistas brasileiros, com resultados iniciais publicados em algumas das mais prestigiadas revistas científicas do mundo. Eles revelam uma espécie de arquitetura dos valores morais no cérebro. Um sistema complexo, que abre vias na medicina, na educação e na compreensão da sociedade, seja no comportamento das massas ou na dinâmica das redes sociais.

A psicologia social já mostrou que existem valores universais, compartilhados por todos os povos. Coisas como honra, honestidade, generosidade e senso de justiça são comuns a todas as culturas. Mas não são somente construções sociais.

— A moral tem uma profunda base neurobiológica. Basicamente, o que varia não são os valores em si, mas a importância que cada indivíduo e sociedade dão a eles. A cultura, a criação e a herança genética modulam o peso que os valores recebem em determinados indivíduo ou grupo social. A sociedade brasileira, por exemplo, é extremamente hedonista — explica o líder dessa linha de pesquisa, o neurocientista Jorge Moll, diretor do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor).

Moll estuda as bases do altruísmo e das chamadas emoções afiliativas, afinidades que fazem as pessoas se reunirem e se identificarem não apenas na família, mas em grupos de amigos, religiões e times de futebol, por exemplo. Essas emoções afiliativas estão na base da arquitetura dos valores. Trata-se de um sistema distribuído pelo cérebro, que envolve áreas profundas, mais ligadas às emoções, e outras regiões associadas ao raciocínio.

— A moral é uma adaptação evolutiva complexa. Ela combina emoções com conceitos sociais abstratos, coisas como perceber o que é generosidade ou preguiça, por exemplo. Esses conceitos abstratos são processados pela região do córtex temporal anterior e interagem com as regiões profundas do cérebro, onde adquirem relevância emocional — diz o pesquisador.

Para entender como essa rede cerebral funciona, a neurociência recorre a instrumentos variados. Um dos mais importantes é a ressonância magnética, que permite medir a atividade cerebral. Grupos de voluntários são submetidos a variados tipos de testes enquanto têm sua atividade cerebral monitorada pelos cientistas por meio de ressonância magnética.

Foi assim que Moll e um de seus colaboradores mais frequentes, o neurologista Ricardo de Oliveira-Souza, também do Idor, fizeram em parceria com cientistas estrangeiros um estudo hoje clássico sobre altruísmo. Em 2006, eles mostraram que doar ativa o mesmo sistema de recompensa que ganhar dinheiro, no trabalho publicado na revista americana “Proceedings of the National Academy of Sciences”.

Interação entre razão e emoção

A outra forma de viajar pelos meandros morais da mente humana é o estudo com psicopatas, portadores de uma doença neuropsiquiátrica caracterizada justamente pela ausência do senso moral. Eles são capazes de fazer julgamentos morais, mas não se comportam de acordo.

— O psicopata sabe o que é certo ou errado. Porém, como não é capaz de sentir culpa ou remorso, tende a violar direitos e infringir regras — salienta Oliveira-Souza.

Num estudo publicado na “Nature Reviews Neuroscience”, Moll, Oliveira-Souza e pesquisadores estrangeiros propõem um modelo em que o sentimento moral é fruto da interação entre razão e emoção. Por exemplo, empatia ou culpa podem emergir da interação entre tristeza ou pertencimento de grupo — gerados em regiões profundas do cérebro — com a avaliação de consequências, feita no córtex prefrontal ventromedial.

Já outra pesquisa, a cargo do psicólogo João Ascenso, doutorando no Idor, indica um forte papel no julgamento moral de uma região do cérebro que atende pelo obscuro nome de córtex cingulado subgenual. Uma pequena estrutura que entra em atividade mesmo quando uma pessoa apenas lê palavras de significado moral.

— O surpreendente é que até quando a palavra é exibida por milissegundos, subliminarmente, essa região é ativada. Mostramos que a simples representação abstrata deflagra uma reação das regiões profundas ligadas à moral. Temos um radar moral social e outro individual — diz Ascenso.

Uma propriedade emergente

Para Moll, os valores são produto da interação entre cultura, criação e genética. Eles são apenas parcialmente associados à personalidade.

— O ser humano tem grande capacidade de apego. Ele se apega a pessoas e valores com os quais compartilha afinidades e orientam sua vida. Embora o apego seja importante para a construção da moral humana, quando excessivo e sem discernimento pode levar a atitudes irracionais. É fácil ver isso ao ouvirmos um torcedor defender seu time quando este joga muito mal ou simpatizantes de um partido político não conseguem admitir os crimes cometidos pelo partido ou seus membros — observa Moll.

Para os pesquisadores, a moral é uma propriedade emergente. Evoluiu com o ser humano para selecionar comportamentos capazes de garantir a sobrevivência do indivíduo, de seu grupo e da espécie.

— Uma sociedade sem valores ou que vê seus valores ameaçados e violados, como a brasileira frente à colossal rede de corrupção revelada pela Operação Lava-Jato, é facilmente manipulável. Em momentos de crise moral, como a que o Brasil atravessa, as instituições são importantíssimas porque representam um sistema de valores. É isso que dá à civilização a sua força — destaca Moll.

Fonte: O Globo

Texto original em: http://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/neurocientistas-brasileiros-desvendam-como-cerebro-processa-valores-como-altruismo-17420410

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