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Brasileiras que chegaram aos 100 anos

O Censo de 2010 registrou a existência de 24.236 pessoas com 100 anos ou mais no Brasil - 16.989 mulheres e 7.247 homens. Chama a atenção o fato de que o Nordeste, justamente onde se tem a menor renda per capita (R$ 715, contra a média nacional de R$ 1.113), apresenta uma incidência de centenárias muito maior. Com 28% da população feminina brasileira, a região concentra nada menos que 42% das centenárias do país. Talvez esteja aí uma indicação de que certas dificuldades podem contribuir para aumentar a fibra, a resistência e a vontade de viver. Afinal, mais do que sobreviventes do ponto de vista físico, as mulheres que alcançam os três dígitos são, necessariamente, admiráveis sobreviventes emocionais.

Imagine, por exemplo, ficar viúva aos 40 anos com nove filhos para sustentar - a mais velha com 15 anos e a caçula com apenas 1. Foi o que aconteceu com Clara Kuhnen Jasper, 103 anos completados no mês passado. Ela vivia feliz em uma propriedade rural de Major Gercino (SC) quando seu mundo desmoronou: o marido, Leopoldo, foi picado no pé esquerdo por uma jararaca enquanto mostrava madeiras a um freguês interessado em comprá-las. Com os limitados recursos da época - estamos falando de 1953 - e a distância de dois dias a cavalo até o hospital mais próximo, ele não resistiu.

Quem busca evidências da superioridade feminina pode encontrá-las nas estatísticas de longevidade: de cada dez pessoas que conseguem alcançar os 100 anos no Brasil, sete são mulheres. Talvez parte dessa diferença se explique por uma suposta compleição física mais resistente, hipótese que suscita debates no meio científico e depende ainda de comprovação. O que se pode afirmar com base em dados objetivos, no entanto, é que elas vivem mais - sete anos além dos homens, em média - por uma razão muito simples: são mais espertas. Pesquisas diversas mostram que elas se alimentam com maior cuidado, vão ao médico com regularidade e não se metem em tantas brigas e confusões com armas de fogo (94% das vítimas de homicídios no Brasil são do sexo masculino).

Sem tempo para se entregar à tristeza, Clara não aceitou a sugestão de dividir os filhos entre parentes e decidiu organizar a prole em torno das tarefas do sítio para garantir a subsistência de todos. Numa época em que 60% dos brasileiros viviam em zonas rurais, contra apenas 15% hoje, a família passou a vender produtos como leite, mel, mandioca e banana no centro da cidade, trajeto de cinco quilômetros que percorria em uma charrete, substituída muito mais tarde por um Fusca. "Ninguém passou fome aqui e nunca precisei comprar nada fiado", orgulha-se. As coisas melhoraram aos poucos e, com o tempo, os filhos foram se casando e deixando o sítio - com exceção da caçula Bernadete, hoje com 64 anos, a única solteira, que faz companhia à mãe em tempo quase integral, com reforços frequentes entre os 39 netos, 64 bisnetos e 7 tataranetos de Clara.

Plenamente lúcida e com a memória intocada, a matriarca lembra como se fosse hoje da aventura que a levou ao sítio pela primeira vez. O marido havia comprado 100 hectares ali, encantado com a beleza da região, cercada por morros cobertos com pasto verde-escuro, bom para a criação de gado. Na viagem da mudança, com Clara grávida de seis meses e a primogênita Relinde no colo, a família foi guiada pela mula do antigo dono das terras. "Ele disse pra gente confiar e seguir a mula, pois ela conhecia o caminho. E deu certo", diverte-se, até hoje, ao lembrar-se da história.

Como anoiteceu no caminho, eles pediram pouso numa casa, mas não foram acolhidos. Leopoldo cortou, então, alguns arbustos e improvisou um leito, forrado com a roupa de cama que traziam na mudança. "Dormimos ali, na beira da estrada, embaixo das estrelas", conta ela, com um sorriso de nostalgia. O começo da vida no sítio seria bastante complicado, como se pode imaginar - por muito tempo não havia energia elétrica e o banho era com água aquecida em fogão a lenha e colocada numa caneca puxada por uma cordinha -, mas Clara não hesita em afirmar que aqueles foram os seus anos mais felizes.

Ela decidiu permanecer na propriedade e não aceitou nem mesmo se transferir para uma casa construída pelos filhos ao lado da original, de madeira. A nova residência já tem mais de duas décadas e nunca passou de um local para hospedar as muitas visitas que o sítio recebe, além de ser uma espécie de museu informal da história familiar - ali estão os quadros com fotos antigas e os utensílios dos primeiros tempos.

"Foi aqui na casa velha que o meu marido me deixou, foi aqui que fiquei com nossas crianças e é aqui que vou continuar até o fim", afirmou, enquanto se recostava serenamente na cadeira de balanço. "Está vendo aquele quarto?", perguntou na sequência, apontando para o lado direito. "Ali nasceram oito dos meus filhos, todos de parto natural, com parteira". Hoje, 52% dos partos feitos no país são fruto de cirurgia.

Outro exemplo de vivacidade e superação vem de Uberlândia (MG), terra de Julieta Cupertino Guimarães, que completou 108 anos em outubro. "Estimarei se estiver tudo bem com você", respondeu ela ao cumprimento inicial do repórter por telefone.

Na década de 1950, diante do adoecimento do marido e da necessidade de contribuir para a renda familiar, ela virou uma exceção entre as amigas e passou a ter um emprego. Na época, apenas 15% da força de trabalho no país era composta por mulheres. Ela aperfeiçoou o conhecimento básico que possuía das regras de inglês, adquirido ao ajudar os filhos nas lições da escola, e tornou-se professora do idioma. Aos 84 anos, depois de aposentar-se das salas de aula, iniciou carreira como tradutora de livros. "Ela não queria ficar em casa fazendo crochê e decidiu se dedicar a um curso de tradução. Esforçou-se tanto que logo estava prestando serviços para editoras", lembra a filha Cristina.

Os primeiros trabalhos foram para converter ao português as histórias românticas, porém levemente apimentadas, publicadas nas coleções "Júlia" e "Sabrina". Com o tempo assumiu projetos mais complexos, como obras de Katherine Mansfield e Joseph Conrad. Quando completou 100 anos, Julieta ainda trabalhava diariamente diante do computador e usando a internet, "monstros" que enfrentou de peito aberto para não se sentir ultrapassada. Nada tão assustador para quem havia sido radioamadora na juventude, quando escapava da sensação de isolamento no interior de Minas para se comunicar com gente do mundo inteiro. Certa vez, em plena Segunda Guerra, um vizinho a ouviu conversando com estrangeiros e espalhou nas redondezas que havia descoberto que ela era uma espiã.

Filha mais velha do dono do cartório local, Julieta se dedicava às tarefas domésticas até conhecer, aos 17 anos, em um baile à fantasia, o futuro marido, o fazendeiro Enéas - que, por ela, se mudou para a cidade e ali abriu uma padaria. O casal mantinha intensa atividade social e esteve entre os fundadores daquele que se tornaria um dos principais pontos de encontro de Uberlândia, o Praia Clube. A morte de Enéas, aos 65 anos, em 1962, em decorrência de um AVC, foi uma das grandes perdas que Julieta teve que enfrentar ao longo da vida e incluem quatro dos nove filhos - Renato, ainda aos 2 anos; Mauro, aos 21, em um acidente de planador enquanto fazia universidade em São Paulo; Marcelo e Fausto, ambos de câncer e com menos de 50 anos. Outra passagem marcante da biografia de Julieta foi ver três de seus filhos diretamente envolvidos na resistência ao regime militar, vivendo na clandestinidade e sob ameaça permanente de prisão e tortura. Como não sucumbir a tantas angústias e tristezas? "Sempre tive cuidado para aceitar o que a vida dá", responde. E quais são os segredos para chegar aos 108 anos? "Vivo cada dia, um atrás do outro. É o dia de hoje que me importa, só hoje. Aprendi a não fazer programação."

Quem também vai chegar aos três dígitos em breve - 20 de junho, para ser mais exato - é Avelina Lentz, moradora de um bairro distante do centro na pequena cidade catarinense de Praia Grande. Questionada sobre a expectativa pela data tão marcante, ela refletiu durante alguns segundos até se pronunciar, com um sorriso: "É... Acho que estou ficando velha."

Sem jamais ter frequentado uma escola, durante várias décadas Avelina trabalhou como agricultora, cultivando especialmente milho, batata-doce e mandioca. Começou em uma época anterior à mecanização, iniciada na década de 1960, e assim se manteve por toda a vida, sempre com uma enxada à mão. Hoje, impossibilitada de continuar na atividade, diz que sente muita falta da lida no campo. "Não tem nada melhor do que ver a semente que você mesma plantou virando alimento lá adiante."

Para passar o tempo e ganhar algum dinheiro, ela tira proveito da vista perfeita para exercitar uma antiga atividade ensinada pela mãe: trançar cestos e chapéus feitos com um tipo de palha que chama de tiririca. Vende as peças aos vizinhos a preços em torno de R$ 10. Um dos raros passeios que ainda faz é visitar o cemitério da comunidade, a cerca de 500 metros de casa. "Conheci todas as pessoas que estão enterradas ali, uma a uma. Um dia estarei ao lado delas."

Diva e Avelina ainda terão bons anos pela frente se conseguirem chegar ao patamar da mulher reconhecida oficialmente como a pessoa mais velha do Brasil: Alida Grubba, 112 anos, de Jaraguá do Sul (SC). A longevidade que ela alcançou é surpreendente até mesmo para os médicos que a acompanham, especialmente depois de um infarto sofrido há dez anos. Desde então, Alida precisa tomar remédios para controlar a arritmia, a pressão arterial e o colesterol.

"Continuo por aqui porque a gente nasce com dia certo pra morrer e o meu ainda não chegou", diz ela, que, viúva há mais de 60 anos, mora em um casarão do centro da cidade herdado do pai. Com um único filho, militar aposentado que vive em São Paulo, ela é cuidada pela enfermeira Darci Holtz, que conta com mais duas pessoas na equipe para conseguir descansar.

Ex-funcionária de um hospital, Darci chegou ao novo emprego em 1998, com a missão de cuidar de uma senhora que já tinha 95 anos. "Nunca imaginei que esse emprego se estenderia por 18 anos", diz ela, que vive um dilema pessoal: já completou 65 anos e, com o nascimento do primeiro neto, gostaria de passar mais tempo ao lado da família.

"Quero muito descansar, mas não tenho como deixar a dona Alida, porque ela está muito acostumada comigo e eu acho que ela não suportaria", explica a cuidadora, que acumula outras atribuições, como administrar a reforma que está sendo feita no casarão centenário de dois andares, tombado pelo patrimônio histórico municipal. Nas horas mais tranquilas do dia, Darci chama algumas vizinhas para que se reúnam em torno da mesa e joguem canastra com Alida, sua atividade predileta.

Moradora do Recife, a filha de espanhol com pernambucana Dionélia Cerviño Rios, conhecida como Lola Rivas, vai completar 102 anos daqui a dez dias, em 14 de março. Ela fez parte da primeira geração de mulheres que ganhou o direito ao voto no Brasil, em 1932. E lembra-se bem que, na primeira eleição depois disso, em 3 de maio de 1933, para a Assembleia Nacional Constituinte, ajudou a eleger o deputado federal Edgar Teixeira Leite. Embora agora o voto lhe seja facultativo por causa da idade, Lola continua querendo participar sempre dos rumos políticos do país. Leitora assídua de jornais, chegou a essa idade sem perder a capacidade de indignação. "O mundo era melhor no meu tempo de criança porque não havia tanta corrupção e tanto ladrão como tem hoje. As pessoas eram mais sérias, mais honestas", afirma.

Criada por avós rigorosos depois da morte precoce dos pais (o pai sofreu um ataque cardíaco e a mãe sucumbiu a uma paralisia provocada pelo que os médicos da época acreditaram ser um choque térmico decorrente de um banho frio em um dia muito quente), ela teve que enfrentar a resistência da família para se casar com um primo, Laureano. "Diziam que meus filhos iam nascer doidos", lembra-se.

Não foi o que aconteceu. Os seis que chegaram à idade adulta - dois morreram ainda bebês, como era relativamente comum à época - exercem profissões intelectuais. Cinco são mulheres, às quais Lola sempre incentivou a buscar independência. "Minha mãe é um grande referencial para todos os que a conhecem e sobretudo para os mais próximos", diz uma das filhas, a jornalista Lêda Rivas.

Viúva há quase 40 anos, Lola diz que nunca pensou em se casar novamente porque passou a apreciar a liberdade de fazer o que bem entendesse. Uma das coisas que lamenta é nunca ter aprendido a dirigir, em decorrência da grande resistência do marido à ideia. "Ele não aparentava, mas era muito ciumento e dirigir me daria uma autonomia que ele receava."

Até recentemente, Lola dedicava-se a fazer bijuterias, mas o agravamento da artrose nas mãos a afastou do passatempo. Tornou-se, desde então, uma adepta fervorosa das palavras cruzadas, atividade que os médicos frequentemente recomendam para conservação da memória.

Outro hobby é o dominó, que adora jogar com os bisnetos. Na TV, gosta de ver documentários. Apaixonada pela Espanha, terra natal do pai e do marido, encantou-se outro dia ao rever paisagens de Sevilha, que teve a oportunidade de conhecer há 50 anos. "Se eu pudesse voltaria lá e conheceria muitos outros lugares. Seria muito bom sair viajando pelo mundo."

Seu mundo real está limitado, contudo, a caminhadas até a esquina, com muitas dificuldades provocadas por problemas na coluna, que a atingiram com mais força nos últimos anos. Mas Lola não se queixa. "Não faz mal estar ruim das pernas se a cabeça ainda está boa. Prefiro isso ao inverso." Seu mundo virtual, no entanto, é amplo. Inclui até perfil no Facebook, no qual frequentemente aparece em fotos para as quais se prepara com esmero. "Sempre foi vaidosa e não mudou nem depois dos 100 anos", brinca a filha Lêda.

Essas seis centenárias têm a favor muito mais o fato de que passaram boa parte da vida consumindo produtos não industrializados do que propriamente terem feito o sacrifício de abrir mão dos prazeres da vida. Clara continua eventualmente comendo carne de porco no jantar, sem se preocupar com os efeitos colaterais. Alida só segue uma dieta com pouquíssima fritura e açúcar por culpa dos problemas de saúde, mas essa é uma necessidade recente. Lola não abre mão de um bom vinho suave. Julieta está liberada pela família para comer chocolate à vontade, pois sempre foi fissurada por açúcar e mesmo assim continua firme e forte - afinal, como diria Diva, em time que está ganhando não se mexe, especialmente se for o Internacional.

Diva, a propósito, deveria ficar longe dos doces em razão do diabetes, mas arranja um jeito de se deliciar quando os familiares não estão por perto. Avelina, que curte uma cachacinha há muitos anos, diz que passou a vida praticamente sem beber água - se tomar dois litros num mesmo dia, como recomendam por aí, tem certeza de que cai dura, mortinha, na mesma hora.

O que há em comum entre essas histórias de vida - Clara, Julieta, Diva, Avelina, Alida e Lola, nomes que parecem ter sido retirados de um romance de Machado de Assis - não são aspectos objetivos. Parece ser algum tipo de força interna quase inexplicável. Todas dão a sensação de que conseguiram depurar as grandes tristezas, inevitáveis em vidas tão longas, e seguiram adiante sem carregar ódio ou ressentimentos. "É esse tipo de coisa que vai corroendo a pessoa por dentro", afirma Lola. "Gente ruim me dá pena, não raiva", concorda Diva. "Intriga não faz bem, não", acrescenta Avelina.

Que bons conselhos dessas adoráveis velhinhas para os tempos de hoje, não?

Fonte: Valor
Enviada por JC

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