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`A guerra contra as drogas está perdida´, diz especialista colombiano

Defensor de políticas de desarmamento da população civil, fim da guerra às drogas e maioridade penal aos 16 anos, o consultor colombiano em gestão pública Jorge Melguizo se reconhece como alguém mais alinhado à esquerda. Mas sua experiência em segurança pública já o levou a assessorar políticos como José Mujica, senador ex-presidente do Uruguai, e Maurício Macri, presidente da Argentina, no desenvolvimento de políticas de combate a violência e de inclusão. Formado em jornalismo, Melguizo foi durante seis anos secretário de governo (Desenvolvimento Social e Cultura) de Medellín, cidade colombiana que viveu uma intensa transformação social nas últimas três décadas, saindo de 382 homicídios a cada 100 mil habitantes, 27 anos atrás, para o atual nível de 20 homicídios a cada 100 mil. No Brasil, a taxa é de 30,5, segundo Organização Mundial de Saúde (OMS). A média mundial é 6.

Melguizo esteve no Brasil nas últimas semanas para participar de projetos de capacitação de prefeitos promovido pelo Sebrae. No Recife, patrocinado pelo Itaú - e acompanhado pela educadora Neca Setúbal -, participou de uma conferência sobre segurança promovida pela prefeitura. Ele conversou com o Valor na capital pernambucana, antes de embarcar para Maceió. A seguir, trechos da entrevista:

Na área de segurança, quais as semelhanças entre a situação do Brasil e da Colômbia?

Jorge Melguizo: Todas. Somos muito similares culturalmente, temos as mesmas dificuldades, altíssima pobreza, alta corrupção, instituições frágeis, impunidade. Somos parte da rede global de criminalidade, porque somos países que favorecem essa criminalidade. Na Colômbia, fomos esmagando o problema, mas como uma pizza, ele se espalhou para Venezuela, Brasil. Se a Colômbia tivesse permanecido um Estado falido nos últimos anos, teria atraído mais a criminalidade para lá.

O que foi feito?

Melguizo: Não existe a 'fórmula Medellín'. Se em Medellín foi possível, em qualquer lugar é. O que temos feito são políticas sociais, educativas e culturais que chamamos de políticas de convivência. O contrário de insegurança não é segurança, mas convivência. Não foi uma mudança abrupta. Nos demos conta, em meados da década de 90, que não sabíamos trabalhar com a juventude, nem o governo, nem as organizações sociais. Hoje somos uma sociedade civil melhor, com melhores ONGs, melhores fundações, melhores empresários. Nossas instituições têm mais controle, são menos politizadas e mais sustentáveis. O patamar de investimento em educação cresceu de 12% para 40% do orçamento do municipio em 2004. Mas nada teria funcionado se não tivéssemos reduzido a corrupção na função pública e feito intervenções urbanas nas áreas mais pobres para fornecer energia, gás, transporte público, equipamentos culturais, saúde. Assumimos que segurança é um desafio coletivo. Em Medellín, todos nos tornamos especialistas na área.

"O narcotráfico tem resultado porque investe muito e bem. Os governos querem ter resultado investindo pouco e mal"

A taxa de homicídios se estabilizou na cidade ou deve cair mais?

Melguizo: Não somos mais a cidade com maior taxa de mortalidade do mundo, coisa que fomos durante 20 anos. Hoje não estamos mais nem nas 50 mais violentas [o Brasil tem 19 no ranking da ONG Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal]. Tínhamos 382 mortes a cada 100 mil habitantes por ano. Nenhuma cidade passou pelo que passamos. No ano passado, vocês no Recife estavam com 38 e estavam desesperados... Hoje, temos 20 em Medellín. O desafio é romper esse limite, chegar a menos de 10.

Por que é difícil sair desse patamar?

Melguizo: Pelo fato de termos sido um país em guerra por 52 anos, um país com narcotráfico, com paramilitares, há muita gente armada. Mas sou otimista. Creio que o acordo de paz com as Farc vai permitir mais foco ainda em projetos de educação e cultura. Fizemos uma tarefa tremenda, somos a cidade com melhor qualidade de vida do país, que mais atrai investimento estrangeiro. Mas isso nos colocou em um ponto de partida, não em um ponto de chegada. Nos falta superar pobreza, desemprego, desigualdade.

No Brasil, os Estados é que são responsáveis pela segurança e existe uma cobrança de que a União atue mais. Qual o modelo que funciona melhor?

Melguizo: O governo federal tem que entender as lógicas das cidades e Estados e trabalhar em projetos estruturais e não conjunturais. As jornadas de pacificação nas favelas do Rio de Janeiro não servem para nada. Em Medellín, o governo federal em 2012 e 2013 fez intervenção nas nossas favelas e isso só trouxe dor e horror. Então propomos ao governo trabalhar de maneira conjunta em projetos de convivência. Facilita o fato de Medellín ter uma autonomia financeira forte. Quase nenhum de nossos projetos depende do governo federal. Para situações como a do Rio e de Pernambuco, é obrigatório que os três níveis de governo façam políticas conjuntas. Os narcotraficantes obtêm bons resultados porque investem muito e bem. Os governos querem ter resultados investindo pouco e mal.

O que foi feito com a polícia?

Melguizo: A polícia não foi o nosso foco principal, mas é importante e fizemos um esforço tremendo. Na Colômbia temos uma polícia nacional, nada estadual e municipal. Isso foi bom. Se a Colômbia tivesse policiais municipais, muitas polícias de pequenas cidades se converteriam em exércitos privados a mando do cacique político da vez, ou seriam cooptadas facilmente pela criminalidade. O prefeito é responsável por tudo em Medellín, menos pela polícia, mas fizemos investimentos.

É preciso uma taxa adequada de polícia por habitante?

Melguizo: Sim, a recomendação mundial é de 1.000 policiais a cada 100 mil habitantes, ou 1 a cada 100. Hoje temos 250 a cada 100 mil na Colômbia, ou 1 a cada 400.

A questão da corrupção policial foi resolvida?

Melguizo: Na semana passada, foi detido um major da polícia de Medellín por associação com organizações criminosas. Uma semana antes, prendemos o secretário de Segurança de Medellín. Me dá tristeza que isso aconteça, mas me alegra que a gente tenha conseguido detê-los. É um retrocesso que o secretário seja delinquente? Sim, mas é um avanço, porque no passado ele não seria detido.

"A pobreza não explica toda a violência. Mas exclusão e falta de oportunidade explicam parte. Principalmente a desigualdade"

Polícia nacional funcionaria no Brasil?

Melguizo: Não creio que seja possível nos casos do Brasil e do México, porque os Estados não vão aceitar, pela estrutura federalista. Mas tem que ter uma unidade de comando e atuação, um acordo de trabalho conjunto. Na região metropolitana de Medellin, há um comando único policial para os dez municípios. Hoje, falamos de crime organizado e nunca de governo e sociedade organizados, ou seja, concedemos ao crime uma capacidade que não temos. O crime tem uma flexibilidade incrível. Temos que nos antecipar, não apenas reagir.

É possível fazer a relação entre a crise econômica e a aumento dos homicídios em vários Estados do Brasil?

Melguizo: A pobreza não explica toda a violência. A América Latina tem o triplo da taxa de homicídio da África, onde muitos países são mais pobres. Mas a exclusão e a falta de oportunidade explicam parte da violência. Principalmente a desigualdade. Os países que menos têm violência estrutural são países em que a classe média é maior. Hoje, um pobre em Medellín é menos pobre que em muitas cidades da América Latina, porque tem sua casa, água potável, serviços públicos, energia, gás, telefonia, serviços culturais, ruas asfaltadas. Todas as ruas em Medellín estão asfaltadas.

A guerra contra as drogas prejudica o combate à redução de homicídios?

Melguizo: A guerra contra as drogas é uma bobagem e está perdida há muitos anos. Por causa dela, a Colômbia retrocedeu como país, pôs em risco sua democracia e pagamos um custo social altíssimo. Somos vítimas da guerra. México é vítima. Começam a ser vítimas também Brasil, Argentina e Venezuela. Quando um problema não tem solução, temos que mudar de problema. Tem que legalizar as drogas e ter um projeto social de prevenção de consumo. Isso não foi feito ainda na Colômbia, embora desde 96 a maconha tenha um consumo regulado. Já se aceitam os cultivos para uso medicinal e terapêutico.

E quem se beneficia dessa guerra?

Melguizo: Não sabemos dizer um só nome de um narcotraficante dos EUA. Se perguntar da Colômbia e do México, todo mundo sabe. Por que não há chefes dos EUA? Porque os três grandes negócios do tráfico de drogas são as armas, a matéria-prima para produzir as substâncias e o dinheiro. Isso fica no EUA e na Europa, onde estão as fábricas de armas, a indústria farmacêutica e os bancos. A Colômbia produz uma heroína de excelente qualidade, mas não nos deixam produzir nenhum opiáceo para a indústria farmacêutica. A Espanha tem cultivo de amapola, sem a mesma qualidade colombiana, e produz morfina para a indústria mundial. Dizemos há 25 anos que a maconha vai chegar à Colômbia em embalagem da Phillip Morris [produtora da marca Marlboro]. Eles terminam ficando com os negócios, e a gente com os mortos.

Adiantaria o Brasil e a Colômbia regularizarem sozinhos os mercados de drogas?

Melguizo: Nem a Colômbia nem Brasil podem legalizar por conta própria, tinha que ser um acordo mundial. Não capazes de fazer isso nem politicamente, nem juridicamente e nem socialmente. Isso pode fazer o Uruguai, que é um país pequeno, é quase um experimento.

Um de nossos pré-candidatos a presidente, Jair Bolsonaro, defende maior acesso de civis às armas. Sua eleição seria positiva para o Brasil?

Melguizo: As armas têm que estar em poder do Estado. Não se pode propor num país como o Brasil a posse pessoal de armas. É irresponsabilidade manifesta. Alguém que propõe isso não tem a mínima ideia de que sociedade é essa. Pelo que conheço do Brasil, Bolsonaro seria negativo não só para área de segurança.


Fonte: Valor Econômico
Enviada por JC

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