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O Checklist

As agressões às quais o corpo humano pode sobreviver, hoje em dia, são tão incríveis quanto horrorosas: esmagamentos, queimaduras, explosões, rotura de vaso cerebral, perfuração intestinal, ataques cardíacos severos, infecções violentas. No passado essas condições eram fatais. Hoje a sobrevivência é um fato corriqueiro, e o grande crédito por isso vai para o insubstituível componente da medicina conhecido como \"cuidados intensivos\" (U.T.I.).
UTI é uma expressão opaca. Especialistas da área preferem chamar o que fazem de \"cuidados críticos\", mas ainda assim não clarificam exatamente a matéria. O termo não-médico \"suporte à vida\" se aproxima mais da essência de atividade. UTIs assumem o controle artificial de corpos em falência. 

Tipicamente, isso envolve uma parafernália de tecnologias - um ventilador mecânico e tubos de traqueostomia se os pulmões falham, uma máquina de hemodiálise se os rins não trabalham mais, um balão intra-aórtico se o coração perde eficiência, filtros de veia cava se trombos ameaçam as artérias dos pulmões. 

Quando você está inconsciente e não consegue mais engolir alimentos, tubos de silicone podem ser cirurgicamente inseridos em seu estômago ou intestino, para alimentá-lo com dietas de fórmulas artificiais. Se os intestinos estão muito danificados, soluções de aminoácidos, ácidos graxos e glicose podem ser infundidos diretamente em sua corrente sanguínea. 
As dificuldades na prática do suporte à vida são consideráveis. Ressuscitar uma vítima de afogamento, por exemplo, raramente é simples como se vê nos filmes de TV, quando simples manobras de compressão torácica e manobras de respiração boca-a-boca sempre parecem trazer qualquer um, que estava com os pulmões encharcados e o coração parado, voltar tossindo para a vida. 

Vejamos, por exemplo, um relato de caso que apareceu no The Annals of Thoracic Surgery, de uma garota de 3 anos, que caiu nas águas congeladas de um viveiro de peixes, em pequena cidade no Alpes austríacos. Ela ficou invisível por 30 minutos, até que seus pais conseguiram localizá-la no fundo do poço, e a puxaram para fora. Seguindo instruções telefônicas de um médico urgentista eles iniciaram manobras de ressuscitação cardio pulmonar. Uma equipe de resgate chegou 8 minutos depois. A garota estava com uma temperatura de 17 graus centígrados, e não havia pulso palpável. Suas pupilas estavam dilatadas, e não reagiam à luz, indicando que seu cérebro não funcionava mais. 
Mas a equipe de resgate continuou, apesar disso, com as manobras de ressuscitação cardio pulmonar. Um helicóptero a transportou até um hospital próximo, onde ela foi imediatamente conduzida a uma sala cirúrgica. Uma equipe de cirurgiões instalou na criança uma máquina de bypass coração-pulmão. Entre o início do resgate por helicóptero e a instalação das linhas de infusão nos vasos femorais de sua coxa esquerda, ela permaneceu sem vida por uma hora e meia. Todavia, ao atingir 2 horas sem melhoras nos sinais vitais, a temperatura corporal aumentou para 27 graus centígrados, e seu coração começou a bater. Foi o primeiro órgão a retornar. 
Após 6 horas, sua temperatura atingiu 36.6 graus centígrados. A equipe médica, então, tentou colocá-la em respiração assistida, instalando respirador mecânico. Porém os danos causados em seus pulmões pela água congelada do tanque criatório fora tão severos que o oxigênio não conseguia chegar ao seu sangue. Eles resolveram, por isso, mudar para um sistema de pulmão artificial conhecido como \"oxigenador de membrana\". Para isso, os cirurgiões abriram seu tórax com uma serra e costuraram tubos que iam e voltavam do sistema extra corpóreo de oxigenação de membrana à aorta e ao seu coração que batia. A criança foi transferida para a UTI, com seu tórax ainda aberto e coberto por uma membrana plástica. Um dia depois seus pulmões se recuperaram suficientemente para transferi-la do oxigenador de membrana para um ventilador mecânico, e as paredes do seu tórax foram costuradas. 

Nos dois dias seguintes todos os seus órgãos se recuperaram, exceto seu cérebro. Uma tomografia mostrou edema cerebral global, o que é um sinal de dano cerebral difuso, sem evidência de infartos encefálicos. O time de neurocirurgia decidiu abrir orifícios na calota craniana, para reduzir a pressão sobre o cérebro, instalando um cateter dentro do cérebro para monitorizar a pressão intracraniana, que passou a ser rigidamente controlada com ajustes constantes através do aporte de líquidos e de medicamentos. Por mais de uma semana ela permaneceu comatosa. Então, lentamente, ela começou a voltar à vida. 
Primeiro, suas pupilas começaram a reagir aos estímulos luminosos. Em seguida, ela começou a respirar sem aparelhos. E, um dia, ela simplesmente acordou! Duas semanas após o acidente, ela voltou para casa. Seu braço esquerdo e sua perna direita estavam parcialmente paralisados. Sua voz estava grossa, lenta. Mas, ao atingir 5 anos de idade, após obedecer extenso programa de terapias ambulatoriais, ela recuperou completamente todas as suas habilidades. Ela voltou a ser igual a qualquer outra garota da sua idade. 
O que tornou sua recuperação um fato espantoso não foi somente a ideia de que alguém possa voltar de duas horas num estado que havia sido considerado como morta. Foi também a ideia de que um grupo de pessoas num hospital comum possa fazer algo tão enormemente complexo. 
Para conseguir salvar essa criança, dezenas de profissionais tiveram que executar corretamente milhares de processos: instalando os tubos de circulação extra corpórea purgados de qualquer bolha de ar, mantendo estéreis todos os cateteres, assim como o seu tórax aberto, e os orifícios em seu crânio; além de manterem as baterias estáveis e todos os equipamentos eletrônicos sob vigilância. O grau de dificuldade de qualquer desses procedimentos é substancial. Além disso, você deve adicionar também, ao desafio, as dificuldades de orquestrar tudo numa sequência lógica, sem um descuido, deixando somente alguns espaços para a improvisação controlada. 
Para cada criança afogada e sem pulsos, salva em serviço de cuidados intensivos, há uma quantidade muito maior daquelas que não o são - e não exatamente porque suas condições já se tornaram irreversíveis. Muitas vezes máquinas pararam de repente, uma equipe não foi veloz ou treinada o suficiente, alguma etapa foi esquecida, um medicamento não estava à mão... Estes casos não são divulgados na literatura médica, mas eles são a regra. Medicina Intensiva tornou-se a arte de gerenciar complexidades extremas - e um teste para estabelecer até onde esta complexidade pode, de fato, ser controlada. 
Em qualquer dia do ano, nos Estados Unidos, cerca de 90 mil pessoas estão internadas em UTIs. No período de um ano, uma população de cerca de 5 milhões de pessoas terá passado por algum departamento de cuidados hospitalares intensivos. E, durante a existência, praticamente todo americano passará pela experiência de se hospedar numa UTI! Vários setores da medicina agora dependem dos sistemas de suporte à vida que uma UTI oferece: cuidados para recém nascidos prematuros; vítimas de acidentes, AVCs, infartos cardíacos; pacientes que sofreram cirurgias cerebrais, pulmonares, ou de grandes vasos, etc. Cuidados críticos tornaram-se uma área cada vez mais relevante dentro daquilo que se faz num hospital. Há cinquenta anos, UTIs nem existiam! Hoje 1 em cada 4 pacientes de um hospital geral estão em leitos de cuidados intensivos. A permanência média dos pacientes de UTi é de 4 dias, e o índice de sobrevivência atinge 83 por cento. Ser admitido numa UTI, sendo colocado num respirador mecânico, com vários tubos e fios entrando e saindo do seu corpo, não é uma sentença de morte. Mas, deverão ser os dias de maior incerteza em toda a sua vida. 


Fonte: Atul Gawande, em Annals of Medicine. 
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