post image

Sobre escolas, festas e famílias

Meus estudos do primário (o correspondente ao atual primeiro grau) foram feitos na escola da Dona Rosa. Era uma escola só para garotos. Naquela época meninos e meninas não podiam estudar na mesma escola. Havia as escolas de meninos e as escolas de meninas. No Diocesano, por exemplo, só estudavam homens. E no Colégio das Irmãs só podiam estudar mulheres. Só fui encontrar mulheres em salas de aula na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará!!!

Mas voltemos à dona Rosa. Ela era uma mulher culta, doce e sensata. Mas sua sensibilidade humana era limitada: além de fazer uso irrestrito das palmatórias, suas atitudes não levavam em conta os direitos das minorias. Aliás, o conceito de direito das minorias ainda não havia sido elaborado. Pelo menos na Teresina dos anos 50. 

Pois bem, havia em nossa sala dois colegas em condição desconfortável do ponto de vista de estrutura familiar. O Antônio Luiz bem cedo tornou-se órfão, pois pai e mãe haviam morrido em acidente de carro quando vinham de Caxias. Assim, aos dois anos de idade, ele já estava sendo criado pela avó. Já o pai do Eramar desapareceu de casa quando ele tinha 3 anos: mudou-se para São Paulo e nunca mais deu notícias.  

Todos os anos, nas datas do dia das mães e do dia dos pais, dona Rosa fazia uma bela e animada festa na escola, mas havia uma exigência incontornável para que pudéssemos participar da festança: no dia dos pais o aluno tinha que estar acompanhado do pai. E no dia da festa das mães só entrava na escola quem chegasse ao lado da mãe. Não tinha essa história de levar substituto, tipo avó, padastro, tia ou madrastra. No caso do Eramar havia um cisma adicional: sua mãe vivia com outro homem, mas dona Rosa não aceitava que esse "pai" acompanhasse o "filho" na tal festa. Em protesto a mãe do Eramar não ia à festa do dia das mães. 

Resultado: todos os anos dava pena ver o semblante dos dois, quando as datas daquelas festas se aproximavam. Enquanto para nós, que tínhamos pai e mãe, aquelas datas despertavam um encantamento, sobre o Eramar o efeito era devastador: nos dias que antecediam as duas festas ele se tornava agressivo e provocador. Já sobre o Antonio Luiz a amargura se manifestava sob a forma de sussurros e lamúrias: "vovó é também minha mãe, sim"! 

O tempo passou, mas nunca consegui apagar da lembrança aquela memória da dor alheia, que se tornou também minha dor. Mas me consolava a certeza de que isso tudo era passado, e que vivemos hoje um tempo de mais sensibilidade para com as diferenças e de grande tolerância para com a diversidade. Afinal, temos no Brasil uma legislação que reconhece como direito legal o que já era fato, prática social consolidada: aprovação das relações homoafetivas, adoção de filhos por casais de mulheres ou por casais de homens, casamentos de pessoas do mesmo sexo com direito a benefícios previdenciários e tudo aquilo que caracteriza a prática da tolerância civilizada para com as várias formas de amar. 

Ah, mas que engano o meu! Assisto agora a uma reação de histeria coletiva contra uma louvável decisão administrativa de um conceituado colégio de Teresina (I.D.B.). Em coerência  com os ditames da legislação brasileira e em sintonia  com o que já é prática corrente em todo o mundo civilizado, o colégio organizou uma festa dedicada às famílias dos seus alunos. E permitiu que da tal festa participem todos aqueles que os alunos consideram seus pais, sejam quais sejam os arranjos familiares. Mas, de repente, numa reencarnação iletrada da Dona Rosa, surgem representantes das trevas medievais contrários à experiência proposta, brandindo argumentos opacos do tipo "crianças não nascem em chocadeiras!!". Realmente, humanos não nascem em ovos, mas há mães que a qualquer pequeno ruído inocente cacarejam enlouquecidas, à maneira das galinhas. Galinhas desocupadas, alienadas, insensíveis e tristemente venenosas. 

jcerqueira@uol.com.br

Compartilhar

Permito o uso de cookies para: