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O direito à saúde cabe no orçamento?

Os R$ 7 bilhões que o ministro da Saúde prevê que serão gastos por União, Estados e municípios em 2016 para cumprir decisões judiciais que obrigam o fornecimento de tratamentos médicos (a chamada judicialização da saúde) só não são mais impressionantes que a velocidade com que este gasto aumenta. Em levantamento prévio, o Ministério da Saúde calculou que o valor havia sido de R$ 950 milhões em 2010. Apenas no Estado de São Paulo o gasto com judicialização, mais de R$ 1 bilhão por ano, é o equivalente a metade do orçamento para assistência farmacêutica e, fosse a judicialização um programa com dotação própria, ela teria o terceiro maior orçamento da Secretaria de Saúde, à frente de hospitais universitários, assistência básica e vigilância em saúde (o que inclui programas como vacinação e controle de epidemias).

Este enorme gasto com judicialização, cujo crescimento não dá sinal de arrefecer, contrasta com as dificuldades financeiras que o SUS enfrenta atualmente em virtude da baixa arrecadação de governos e com as propostas de desvinculação constitucional de receitas para a saúde. Este cenário reforça a ideia de que o direito constitucional à saúde não cabe no orçamento.

Porém, o que não cabe no orçamento é a interpretação predominante no Judiciário brasileiro (sobretudo nas Justiças estaduais) de que o direito à saúde garante acesso a todo e qualquer tratamento, mesmo quando sua segurança e eficácia não foram certificadas pela Anvisa ou, como na maioria dos casos, quando há no SUS alternativas terapêuticas adequadas a um custo menor.

Esta aplicação do direito à saúde, ainda que feita com a melhor das intenções, força uma alocação de recursos que conflita com as recomendações da Organização Mundial de Saúde para que sistemas de saúde priorizem gastos em tratamentos com eficácia e segurança comprovadas e que tenham boa relação de custo-efetividade. Sistemas que não se pautam por essas diretrizes gastarão cada vez mais para oferecer benefícios cada vez menores e a menos gente.

Porém, como conciliar um sistema de saúde eficiente com o direito à saúde? Um grupo internacional de especialistas, que inclui o primeiro relator especial da ONU para o direito à saúde, reuniu-se na University College London (Reino Unido) em 2015 e concluiu que não há contradição entre estabelecer prioridades na linha das recomendações da OMS e o direito à saúde. Ao contrário, houve consenso de que o direito à saúde exige que o Estado estabeleça prioridades para garantir eficiência e igualdade no cuidado à saúde. Foi consensual também o entendimento de que a judicialização como ocorre no Brasil é exemplo de uma aplicação equivocada do direito à saúde.

Juízes na África do Sul e Reino Unido julgam questões relacionadas ao fornecimento de tratamentos com cuidado para não tornar ainda mais difícil o trabalho do gestor, com consciência de suas próprias limitações institucionais e preocupados com o impacto das suas decisões sobre outros pacientes. Estes aspectos são raramente discutidos no Judiciário brasileiro ou são abordados de forma abstrata sem enfrentar o fato de que por trás da proteção judicial do direito à saúde está uma escolha com ganhadores e perdedores. Mesmo na Colômbia, onde há um padrão de decisão judicial parecido com o do Brasil, o Judiciário já tem adotado posição firme de que não há o dever do Estado de fornecer tratamentos sem registro na agência de vigilância sanitária ou a ser realizados no exterior.

Portanto, a interpretação do direito à saúde como o direito a tudo que um médico prescreve não é inescapável, nem a mais comum e tampouco a recomendada por especialistas internacionais. Ela é também historicamente equivocada no contexto brasileiro. A constitucionalização do direito à saúde e a criação do SUS tiveram como objetivo incluir os chamados indigentes sanitários, cidadãos que anteriormente não contavam com a cobertura de um sistema de saúde. O direito à saúde foi pensado como o direito de acesso a um sistema de saúde independente da capacidade de pagar (universalidade), sem discriminação ou privilégio (igualdade) e que abrange medidas preventivas e curativas em todos os níveis de complexidade (integralidade). O direito de acesso a tal sistema, que cabe no orçamento, é diferente do direito a que ele forneça tudo a todos, o que não cabe nas contas de nenhum país do mundo.

Espera-se que o Judiciário ofereça soluções em um contexto de carências no sistema público de saúde, subfinanciamento, corrupção e gastos públicos que muitos veem como desperdício (as Olimpíadas são um exemplo que vêm ao ponto). Contudo, o gestor de saúde obrigado a cumprir uma decisão judicial não consegue criar novas fontes de receita, não tira o dinheiro do bolso do corrupto e não tem poder para interromper a construção de um estádio.

O recurso sai do montante disponível para as ações e serviços de saúde, de forma que o que vai para cumprir decisão é o que vai faltar para atender outras necessidades em saúde. Frente às carências do SUS é preciso pensar se a judicialização é parte da solução ou do problema, pois R$ 7 bilhões não saem do orçamento sem deixar consequências. Na Colômbia, – um cenário parecido com o do Brasil atual, aumento exponencial da judicialização por tratamentos de alto custo e crise de financiamento do sistema de saúde – resultou na estagnação de políticas preventivas e na piora em indicadores de saúde da população.

O SUS passa por uma crise séria a ponto de sua viabilidade estar posta em dúvida. O Judiciário e sua interpretação do direito à saúde têm sua parcela de responsabilidade nisso.

Fonte: Valor Online/Daniel Wang
Enviada porJC

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