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Refluxo: o problema de rotular um problema de saúde como doença

Como qualquer pai sabe, os bebês arrotam. É o refluxo gastroesofágico, explicará o pediatra – leite que vaza de volta do estômago. Quando eu era residente em pediatria, meu hospital produziu almofadas inclinadas de espuma para os bebês dormirem. A ideia era que os bebês que estivessem dormindo em um determinado ângulo teriam menos chances de regurgitar o leite. As almofadas custaram cerca de US$ 150. E não funcionaram. As almofadas inclinadas não são a única solução que os médicos tentaram. Nós tentamos construir cadeiras especiais para os bebês para evitar o refluxo. Tentamos alimentos mais grossos. Tentamos mudar para leites especiais. Nada disso funcionou. Uma quantidade incrível de tempo e dinheiro foi gasta.

O maior problema, contudo, é que a maior parte dessas crianças não estava "doente". Apenas demos a eles um diagnóstico oficial. Essa rotulação de pacientes com uma "doença" pode ter consequências significativas, tanto para a saúde das pessoas quanto para o orçamento nacional de saúde.

Cerca de 50% dos bebês saudáveis regurgitam mais de duas vezes por dia. Cerca de 95% deles param de regurgitar completamente sem tratamento. Quando a maioria dos bebês têm (e sempre tiveram) um conjunto de sintomas que desaparecem sozinhos, isso não é uma doença – é uma variação da normalidade.

Os bebês vomitam com frequência porque eles têm uma dieta apenas de líquidos. Eles têm um esfíncter esofágico imaturo, que não fecha totalmente a passagem entre o estômago e o esôfago. Eles se alimentam a cada poucas horas, e têm estômagos pequenos. Inúmeros bebês terão sintomas de refluxo gastroesofágico.

A doença do refluxo gastroesofágico (RGE) é diferente. Crianças com RGE têm sintomas tão graves que deterioram suas vidas. É raro. Mas com o tempo, mais e mais bebês com refluxo foram rotulados como portadores de uma "doença". A incidência de um diagnóstico de RGE em crianças triplicou de 2000 a 2005.

Costumamos tratar as doenças com remédios. Hoje, normalmente tratamos os bebês com um conjunto de remédios chamado inibidor da bomba de próton (IBPs). Entre 1999 e 2004, o uso de uma forma líquida de IBP aumentou mais de 16 vezes. Isso apesar do fato de que os IBPs nunca foram aprovados pela Food and Drug Administration (agência reguladora de alimentos e medicamentos nos EUA) para o tratamento de RGE nos bebês.

Em 2009, um teste randômico, controlado com placebo, para examinar como o IBP funcionava para bebês com sintomas de RGE foi publicado. Ele descobriu que a droga não tinha mais efeito do que um placebo. Ele também descobriu que as crianças que recebiam o IBP tinham efeitos colaterais significativamente mais graves, incluindo infecções do trata respiratório.

Há muita culpa a distribuir por esta bagunça. Mas ampliar nossa definição de doença provavelmente tenha tornado tudo isso possível.

Minha amiga e colega Dra. Beth Tarini, pesquisadora de serviços de saúde na Universidade de Michigan, publicou um estudo no ano passado que examinou como os pais reagem quando seus filhos são diagnosticados com RGE.

Tarini e seus colegas escolheram aleatoriamente alguns pais para contar que uma criança com sintomas de refluxo tinha RGE ou, em vez disso, "um problema". Metade de cada um desses grupos também foi informada de que os medicamentos eram ineficazes.

Os pais que foram informados que seus filhos tinham RGE ficaram significativamente mais interessados em dar medicação para os filhos, mesmo ao saber que os remédios eram ineficazes. Pais de bebês que não foram rotulados com RGE não se interessaram em remédios uma vez que souberam que eles não funcionam.

As palavras importam. Estudos mostraram que uma vez que pessoas com pressão alta são rotuladas como "hipertensas", elas passam a faltar significativamente mais ao trabalho, independentemente de o tratamento ter começado. Muitas doenças se tornaram tão mais amplas em definição que agora abrangem grandes fatias do público.

Quando as estatinas foram aprovadas, elas foram usadas para tratar pessoas com níveis muito altos de colesterol. Acreditava-se que seu benefício era claro para essa população.

No ano passado, contudo, a publicação de novas orientações significou que mais de 87% de todos os homens entre 60 a 75 anos deveriam ser aconselhados a tomar estatinas e o mesmo para mais de 53% das mulheres da mesma faixa etária. Quase todo homem negro acima dos 65 anos deveria ser aconselhado a tomar o medicamento.

A Academia Norte-Americana de Pediatria divulgou orientações há alguns anos recomendando que as crianças menores de oito anos fossem tratadas com medicação para um nível de colesterol LDL mais alto do que 190. Muitos acreditam que isso está indo longe demais. Ninguém sabe as consequências a longo prazo de tomar esses medicamentos por décadas.

Permitir a medicalização de variações normais da fisiologia, transformando-as em "condições tratáveis", está levando a consequências indesejáveis. Estamos gastando bilhões de dólares em tratamentos que podem não funcionar, ou não funcionam. Estamos deixando as pessoas preocupadas quando não é necessário. E podemos estar causando problemas de saúde de verdade no processo.

Como Tarini coloca: "Nosso dever como médicos é deixar saudáveis os pacientes doentes, e não deixar doentes os pacientes saudáveis."


Fonte: The New Yorrk Times
Enviada por JC

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